Do Direito da Transmissão dos Bens Digitais decorrentes das Redes  Sociais frente à Proteção dos Dados Pessoais dos Titulares

Do Direito da Transmissão dos Bens Digitais decorrentes das Redes Sociais frente à Proteção dos Dados Pessoais dos Titulares

10 de dezembro de 2021 Off Por Poliane Almeida

Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Direito Civil como requisito parcial à obtenção do título de especialista pela PUC/MG. Poliane Almeida

RESUMO

O presente trabalho tem como abordagem verificar como os bens digitais podem ou não serem transmitidos aos herdeiros durante a herança digital. Trazendo evidências da lucratividade que a profissão de Digital Influencer pode oferecer ao indivíduo que a exerce, bem como demostrar como os bens tidos como “existenciais” na verdade possuem valor patrimonial, e como a proteção dos dados pessoais deve ser observada na preservação aos direitos da personalidade que continuam do de cujus, dos herdeiros e de terceiros evolvidos. Assim, na ausência de normatização jurídica de toda uma cadeia trará aos interessados insegurança jurídica e domínio dos dados pessoais pelas empresas donas das plataformas de serviços online e redes sociais.

 

PALAVRAS-CHAVES: Herança digital; legado digital, transmissibilidade, herdeiros, contratos digitais, cláusula abusiva, proteção dos dados pessoais.

 

SUMÁRIO: Introdução; 1 A busca pela compreensão do conceito da Herança Digital; 2 O que são bens digitais; 2.1 A rentabilidade do trabalho dos Digitais Influencers; 2.2 Grande problema jurídico e social dos próximos anos pela falta de regulamentação legal; 2.3 Bens existenciais e patrimoniais para efeitos de transmissão aos herdeiros; 3 Direitos da personalidade; 4 Sucessão causa mortis dos bens digitais e Legitimidade para administração dos bens digitais do de cujus; 4.1 Termos de uso das plataformas e justificativa para a propriedade das contas digitais; 5 Herança Digital e Proteção dos Dados Pessoais: controvérsias e perigos; Conclusão; Referências.

 

 

INTRODUÇÃO

 

No mundo tecnológico e conectado que estamos vivendo a internet deixou de ser utilizada apenas para pesquisas e entretenimento. A vida moderna atual está concentrada dentro das redes sociais.

Novas profissões estão surgindo com o grande alcance que as redes proporcionam. Muitos indivíduos estão concentrando seus esforços de vendas de produtos e serviços apenas nas redes sociais.

Ser Digital Influencer nunca esteve tão no auge do desejo de muitas pessoas, às vezes atraídos pela visibilidade, autoridade e pela promessa de altos rendimentos.

Assim, nasce a necessidade da existência de leis que regulamentem os bens digitais produzidos pelos Digitais Influencers e por demais profissionais.

Ademais, e quando essas pessoas falecerem, o que será feito com os seus bens digitais existenciais e patrimoniais? O direito dos herdeiros na realização da herança digital será restringido e ignorado? As plataformas online e redes sociais poderão se valer do contrato de adesão assinado pela pessoa para apropriar dos bens digitais após sua morte? E os dados pessoais do de cujus e terceiros? Esses poderão ser compartilhados com os herdeiros? Como fica a privacidade e proteção de dados dos envolvidos?

Estas e muitas outras questões precisam ser debatidas em nossa sociedade, e neste trabalho há reflexões sobre os temas.

 

1  A BUSCA PELA COMPREENSÃO DO CONCEITO DA HERANÇA DIGITAL

 

Antes de falarmos em herança digital precisamos ter bem definido o conceito amplo da herança em nosso ordenamento jurídico.

A Constituição Federal de 1988 garante o direito de herança em seu artigo 5, inciso XXX, sendo uma das garantias fundamentais da pessoa.

No Código Civil no artigo 1.784 ao artigo 1.880, vimos as normas relacionadas a herança, desde a o espólio até o testamento particular. Para que haja a herança o primeiro requisito que podemos observar em nosso ordenamento jurídico é o falecimento do possuidor dos bens. A herança é a transferência de um conjunto de bens deixados pelo de cujus, que adquiriu enquanto vivo, passando agora a ser um direito dos seus herdeiros.

Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida (2021, p. 9 e 10) sobre o assunto dizem ser a “herança, em sentido amplo, o conjunto patrimonial deixado pelo morto, também denominado acervo hereditário, massa ou monte, e “numa especialização semântica” espólio, como observa Caio Mário da Silva Pereira, que compreende o patrimônio ou parte dele, incluídos os legados, que passam a outra(s) pessoa(s). A herança é uma universalidade de direito, constituída pelo complexo de relações jurídicas do morto, dotadas de valor econômico (CC, artigo 91), que passam aos sucessores, como um todo unitário […].” Assim, nos mesmos moldes da herança “tradicional” temos a herança digital, que não deve se distinguir em nada da anterior, apenas pela categoria dos bens, pois os bens poderão ser também em formato de direitos e situações jurídicas como veremos.

Ora, se a herança descrita no Código Civil acontece com a morte da pessoa e transferência da propriedade dos bens aos herdeiros, na herança digital isso também deverá acontecer. Quando da extinção da personalidade da pessoa humana em razão da morte, os seus bens digitais também deverão ser transmitidos aos herdeiros.

“Quando falamos em herança digital ainda há muitos desentendimentos sobre o que seria isso de fato. Mas podemos entender como uma situação jurídica extrapatrimonial (e patrimoniais a meu ver) que continuam a receber tutela, na medida em que são socialmente relevantes, mesmo que falecido seu titular […].” (Rose Melo Vencelau Meireles, apud por Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida (2021. p. 12).

 

2  O QUE SÃO BENS DIGITAIS

 

Os bens digitais são traduzidos pela digitalização de informações transformando-as em números (ou códigos binários), tais como sons, imagens, textos, ações de um robô etc.

A tecnologia proporcionou essa nova nomenclatura de total relevância econômica, social e cultura.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder citam Pierre Levy (2021.

p.28) “bens digitais são bens imateriais representados por instruções codificadas e organizadas virtualmente com a utilização linguagem informática, armazenados em forma digital,  Seja no dispositivo do próprio usuário ou em servidores externos como no caso de armazenamento em nuvem,  por exemplo,  cuja interpretação e reprodução se opera por meio de dispositivos informáticos (computadores, tablets, smartphones dentre outros),  que poderão estar ou não armazenado no dispositivo de seu próprio titular,  ou transmitidos entre usuários de um dispositivo para outro,  acesso via download de servidores ou digitalmente na rede,  E podem se apresentar ao usuário[…].”

Nos tempos atuais a internet contribuiu de sobre modo para a implementação da tecnologia digital como parte das tecnologias da informação e comunicação, criando-se assim classificações de bens.

Os bens digitais são uma nova visão e contrapõe a visão estática da propriedade.  Se antes a ideia central girava em torno da apropriação dos bens, o fato de ter acesso a tais bens é uma nova modalidade de pertencimento. Os mercados estão centrados nas economias de rede, perdendo o valor o patrimônio físico para ganhar valor os bens intangíveis.

Um exemplo claro sobre isso é quando falamos na transformação social que estamos evidenciando. Muitas pessoas não mais querem adquirir bens duráveis, invés disso estão preferindo cada vez mais ter acesso na forma de leasing como aluguéis de casas e carros, associações e outros serviços através de aplicativos. Claramente uma troca de propriedade pelo acesso.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder aduzem em seu texto que “a situação jurídica patrimonial é aquela que desempenha função econômica, passível de conversão em pecúnia, tendo por objeto interesses financeiros e por escopo o lucro.  Por isso, sua tutela está diretamente ligada à realização da livre iniciativa tem por fundamento o artigo 170 da Constituição Federal. No tocante aos bens digitais, Bruno Zampier sugere que a situação quando a informação inserida na rede gerar repercussões econômicas imediatas, sendo dotada de economicidade[…].” (Bruno Zampier, apud por Ana Carolina Brochado

Teixeira e Carlos Nelson Konder, 2021. p. 31)

Do mesmo modo, bens digitais que cumprem a sua função patrimonial em princípio deveriam ser considerados transmissíveis consolidando o conceito da herança digital.

 

 

2.1  A rentabilidade do trabalho dos digitais influencers

 

O trabalho dos Digitais Influencer é muito rentável nos dias de hoje. Os perfis em redes sociais e canais de YouTube são exemplos de situações existenciais com valores patrimoniais.

Esta nova categoria profissional tem como finalidade a promoção pessoal, divulgação de produtos de forma remunerada e exposição o seu estilo de vida.  Assim, quanto mais seguidores, mais indicação de um produto alcançará um público maior.

Muitas empresas estão trocando a sua abordagem de marketing e publicidade em mídias televisivas para o ambiente das redes sociais, pois o ambiente da internet proporciona uma divulgação e propagação maior.

A lógica dos Digitais influencers é quanto mais seguidores, maior será sua chance de grandes marcas o contratarem para divulgação de seus produtos e serviços.

“De acordo com pesquisas recentes, no mundo a indústria dos influenciadores digitais (já está quase chegando nos 10 bilhões de dólares 2020, sendo que em 2016 não passava de 2 bilhões de dólares.  Podemos notar que em um curto período o mercado se multiplicou por 5 […].”, segundo Arthur Solow (2021).

Dino (2020) diz que “no Brasil o crescimento exponencial de seguidores de digitais influencers também ganharam proporções gigantescas, esses números tiveram grandes aumentos ao crescimento do uso dos smartphones no país.  Quanto maior número de acessos aos smartphones na população, maior será o acesso à internet e consequentemente maior o número de contas em aplicativos de redes sociais […].”

Uma pesquisa do Ibope revelou com relação aos influenciadores digitais que atualmente 70% dos brasileiros são internautas (Dino, 2020).

A pesquisa ainda aponta que o mercado de influenciadores digitais desde 2016.  O estudo mostrou que 52% dos internautas do Brasil seguem pelo menos um influenciador digital.  Sendo os seguidores em maioria do sexo feminino.  O estudo também aponta é mais representativa de seguidores de influências digitais é entre 25 e 34 anos, e pertence à classe B.

Paulo César (2021) faz um levantamento desses números. “Uma pesquisa realizada pela Opinion Box, relata que os brasileiros são altamente influenciados por celebridades em suas decisões de compras:

  • 67% dos usuários do Instagram no Brasil seguem algum influenciador digital;
  • 55% dos entrevistados disseram já ter comprado algo indicado ou utilizado por um influenciador digital;
  • 18,5% afirmam que já foram influenciados por celebridades durante seu processo de compra;
  • 82% dos brasileiros seguem marcas no Instagram;
  • 47% interagem com posts em empresas e marcas[…].”

“A imagem influencia milhões de seguidores e faz com que o seu valor financeiro cresça na medida em que seu séquito de seguidores aumenta. Essa é a nova medida do mercado. Sem contar com as situações em que o valor é agregado não apenas à imagem do blogueiro, youtuber ou influenciador, mas a toda a família: muitas vezes, as postagens geram engajamento quando os membros da família – inclusive filhos menores – também estão inseridos no anúncio, que por vezes é inclusive, de produtos infantis […].” (Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder, 2021. p. 31).

Tudo funciona como uma vitrine (imagem, estilo de vida, reputação e mais) e geram valor econômico na rede.

 

 

2.2  Grande problema jurídico e social dos próximos anos pela falta de regulamentação legal

 

Em razão da falta de regulamentação do tema da herança digital no Brasil gera uma insegurança e instabilidade social, vez que apesar do cidadão poder recorrer ao judiciário caso necessite discutir sobre a transmissão de bens, ele encontrará o Estado despreparado e sem uniformização do direito.

No artigo de Bruno Torquato Zampier Lacerda (2021.p. 44) ele levanta esse questionamento sobre a função do Estado em dizer o direito:

“Nas democracias liberais, espera-se que o Estado exerça uma função promotora e garantidora de direitos fundamentais. Indubitavelmente, os bens digitais viabilizarão o exercício de alguns destes direitos, tais como a imagem, o nome, a privacidade, a liberdade de expressão e a propriedade. É tarefa estatal, portanto, mirar sua titularidade e ao efetivo exercício desta gama de novos direitos, seja a partir da aplicação do arcabouço legislativo já existente, ou através da criação de novos dispositivos legais que especifiquem o tratamento a ser dispensado aos ativos virtuais […].”

A negativa do Estado em tutelar essa temática, gerará maior opressão às pessoas naturais, que é inegável que possuem titularidades frente aos bens digitais, ocasionando vulnerabilidades frente às grandes companhias de tecnologias, que alegam ser os possuidores dos bens digitais, quando do falecimento dos titulares das contas.

 

 

2.3  Bens existenciais e patrimoniais para efeitos de transmissão aos herdeiros

 

Parte do dilema da transmissão dos bens digitais gira em torno da dependência da natureza do conteúdo existente na conta do falecido.

“Segundo essa corrente, os conteúdos digitais de caráter patrimonial seriam transmitidos normalmente aos herdeiros, mas não aqueles de caráter extrapatrimonial, vale dizer, de caráter estritamente pessoal ou existencial. Alguns defensores desta linha sustentam que, em respeito ao direito de personalidade post mortem do titular da conta, tais informações não deferiam ser transmitidas aos herdeiros, mas apenas aos membros familiares mais próximos. Defende-se ainda que caberia a terceiro fazer a separação entre os conteúdos patrimoniais e existenciais antes da transmissibilidade. Isso significa, no caso sub judice, que um terceiro (não os pais, os legítimos sucessores) teria que analisar e fazer a triagem de todo o conteúdo digital acumulado em vida no mundo digital pela jovem falecida a fim de decidir o que poderia ser – ou não – acessado e transferido a seus pais, análise ao caso Bundesgerichtshof da Alemanha […].” (Laura Schertel Ferreira Mendes e Karina Nunes Fritz, 2019).

Ora, para começar será ilógico reconhecer que somente os bens patrimoniais seriam objeto de transmissibilidade, e que os bens existenciais não poderiam passar para os herdeiros em razão do falecimento da pessoa. Contudo, nota-se que esse debate se intensifica apenas quando falamos em bens digitais, vez que desde a existência do instituto da família os bens existenciais ou emocionais são transmitidos aos herdeiros, tais como o culto aos ancestrais, diários, cartas, fotografias e muitos outros.

Então, como poderíamos apenas desprezar o fato que os bens digitais deveriam ser sim objeto de herança? Pois na verdade, não há razão axiológica para tratar conteúdos digitais e conteúdos analógicos de forma diferente quando ambos possuem caráter existencial, ou seja, a existencialidade não resulta da forma como tais informações estão corporificadas ou salvas, mas exclusivamente de seu próprio conteúdo.

 

 

3   DIREITOS DA PERSONALIDADE

 

Há um grande debate nacional e internacional sobre o direito da tutela póstuma dos direitos da personalidade do falecido.

Ora, quando concluímos que sim, os direitos da personalidade do de cujus devem ser transmitidos, a pergunta que não calar é: mas será um direito de que ou quem?

Maici Barboza dos Santos Colobo (2021. p. 107) aduz que:

“a compreensão da tutela póstuma dos direitos da personalidade demanda o reconhecimento de que essa proteção somente se justiça quando empregada em favor da personalidade em sentido objetivo, na condição de bem socialmente relevante e intrinsecamente associado à dignidade humana amparada no artigo 1, III da Constituição da República Federal de 1988. Em outras palavras, a personalidade que se tutela por meio dos direitos da personalidade não se refere à subjetividade – qualidade de titular de direitos e deveres na ordem civil ou aptidão para figurar nas relações jurídicas, conforme o tradicional conceito do termo, atualmente coincidente com a capacidade de direito. Tutela-se, sim, a condição da pessoa humana e suas múltiplas manifestações, inclusive aquelas que continuam se projetando mesmo após a morte do titular […].”

O artigo 11 do Código Civil de 2002 traz a regra da intransmissibilidade dos direitos da personalidade, salvo exceções previstas na lei, entretanto, dá a possibilidade aos familiares em requererem às medidas relativas à ampla tutela, conforme artigos 11 e 20 do Código Civil de 2002, ou seja, existe um conflito aparente entre a tutela póstuma e a intransmissibilidade dos direitos da personalidade.

Dizer que os direitos da personalidade se findam com a morte da pessoa não põe fim ao tema, vez que os familiares podem requerer proteção aos seus próprios direitos de personalidade ao pleitearem proteção e tutela póstuma da personalidade do falecido.

O dilema central que merece atenção é quando os direitos da personalidade dos familiares (em suas atuações) se contrapõem com a personalidade do de cujus. Quando estamos diante de uma ação que visa a proteção de direitos próprios dos familiares, pode ser que esses direitos vão contra a tutela póstuma da personalidade.

Isso fica mais aparente quando da análise de casos concretos de tutela póstuma versos a privacidade e proteção de dados do ente finado.

Apresente-se dois casos concretos para comparações, um julgado da justiça brasileira e um episódio ocorrido na Inglaterra, nestes casos podemos observar quando os interesses próprios da personalidade do familiar se contrapõe (ou não) à tutela póstuma.

O julgado pelo Juízo da 10ª Vara Cível da Comarca de Guarulhos/SP traz o interesse de uma viúva que requereu os dados de acesso do e-mail do marido falecido sob a argumento que existia uma documentação relativa a um imóvel comprado pelo casal arquivado naquele local virtual. A sentença, já transitada em julgada, deu provimento aos pedidos da autora que teve o acesso entregue pelo provedor (Guarulhos, 2020).

Já na Inglaterra temos o caso de uma jovem de 19 anos que faleceu em decorrência de uma doença. Sua mãe que já a ajudava na administração da conta do Facebook pleiteou que continuasse com a acesso de todas as funções da rede. Nota-se que a conta era utilizada pela jovem para conversar com familiares e amigos, postagem de fotos e de conteúdo, e que nos últimos tempos sua mãe possuía a senha para auxílio. Contudo, o Facebook tornou a conta da jovem falecida como um memorial (normalmente é o procedimento adotado pela rede social), impedindo acesso de terceiros. (BBC News Brasil, 2015).

Nas palavras da mãe “Eu sinto como se o conteúdo que tinha lá fosse minha herança.

As coisas que ela tinha online deveriam ser minhas para que eu pudesse acessá-las […].” (BBC News Brasil, 2015).

Contudo, o pedido formalmente realizado pela mãe para continuar com o acesso foi negado pelo Facebook sob o argumento que assim descrevia o termo de uso da empresa.

Retirando a parte que o Facebook age discricionariamente quanto suas negativas de acesso, negando a transmissão dos bens digitais, constata-se que no caso brasileiro o pleito se deu para preservação de um direito de tutela póstuma da viúva, não invadindo e nem interferindo na personalidade do de cujus.

No outro fato, a mãe queria o acesso aos dados também decorrente de seu direito de tutela póstuma, mas esse acesso poderia implicar em conhecimento de todas as conversas privadas que a jovem realizou com terceiros. E como ficaria a preservação desses terceiros titulares de direitos?

 

4       SUCESSÃO CAUSA MORTIS DOS BENS DIGITAIS E LEGITIMIDADE PARA ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DIGITAIS DO DE CUJUS

 

Em um conjunto de bens de uma herança, os sucessores respondem pelas obrigações do falecido, e dentre essas obrigações não existem apenas às pretensões patrimoniais que os herdeiros precisam responder. Pretensões e obrigações também surgem do conteúdo existencial vindos das contas digitais de uma rede social do falecido, que, assim tem relevância não apenas existencial, mas também patrimonial.

O acesso ao conteúdo da conta serve, portanto, para verificar a existência e validade das pretensões do falecido face a terceiros, bem como das pretensões de terceiros face ao falecido (Laura Schertel Ferreira Mendes e Karina Nunes Fritz, 2019).

As redes sociais cumprem com o dever de prestação de serviço para com o emissor (proprietário da conta) quanto para com ao destinatário (terceiros) das informações compartilhadas nas plataformas. De tal modo é legitimo o tratamento dos dados pessoais que as redes realizam.

Aberta a sucessão com a morte da pessoa a conta digital passa aos herdeiros, que possuem interesse legítimo em defender seus direitos e interesses sucessórios.

A ordem de eficácia de acesso à conta digital não se finaliza com o falecimento do de cujus, pois continua a existir a transmissão e a disponibilidade de conteúdo digital na rede através desta conta. Assim, os herdeiros podem continuar a gerir esse conteúdo enquanto durar a conta. Sendo, portanto, legítimos para esse encargo.

Laura Schertel Ferreira Mendes e Karina Nunes Fritz ao comentarem o caso da jovem alemã aduziram que cabe análise do caso concreto, se o acesso à conta mostra-se necessário para a preservação de interesses legítimos de terceiros, sejam eles de natureza jurídica, fática, econômica ou simplesmente existencial. No caso da adolescente berlinense, indiscutível o interesse dos genitores herdeiros. Esse interesse justifica-se não apenas porque, com a morte, eles sucederam a filha no contrato de utilização da rede social e adquiriram, portanto, uma pretensão contratual contra o Facebook, direcionada a acessar o conteúdo digital da conta da falecida, mas também porque têm – enquanto herdeiros – interesse legítimo em defender seus direitos e interesses sucessórios […].” (2019. p. 204).

 

 

4.1   Termos de uso das plataformas e justificativa para a propriedade das contas digitais

 

Em razão de falta de legislação pertinente no Brasil que trate sobre os bens digitais e os direitos de sucessão de causa mortis, as plataformas de serviços digitais aplicam suas próprias regras e promovem destinos distintos e injustos aos bens digitais do de cujus.

Os contratos de adesão das plataformas junto aos usuários proprietários das contas digitais assumem caráter personalíssimo, e dado o falecimento da pessoa, aos herdeiros não se faculta o acesso pleno das informações armazenadas.

É um contrabalanço entre os direitos previstos na Lei Geral de Proteção dos Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), pois esta lei determina que o titular tenha total poder sobre os seus dados pessoais, no caso em tela, ele deveria poder dizer o que será feito com suas informações e bens digitais em caso da sua morte.

Entretanto, as plataformas de redes sociais são intransigentes, negando o acesso aos herdeiros aos dados e se apossando dessas informações. Vale lembrar que empresas deste ramo estão faturando trilhões com os dados pessoais disponíveis em suas plataformas, então é extremamente válido a pose dos bens digitais de uma pessoa falecida para eles.

No termo de uso do iCloud da Apple vemos que os dados pessoais salvos nesta nuvem serão excluídos com a morte do indivíduo ao menos que o proprietário em vida faça o planejamento familiar e indique o Legado Digital:

 

  • Legado Digital. Com o Legado Digital, você pode escolher adicionar um ou mais contatos para terem acesso e baixar alguns dados de sua conta após a sua morte. Se os seus contatos designados fornecerem um certificado de óbito para a Apple e tiverem a chave necessária, eles terão acesso automaticamente a tais dados da conta e o bloqueio de ativação será removido de todos os seus dispositivos. Desta forma, é responsabilidade sua manter os contatos de Legado Digital atualizados. Você pode saber mais sobre o Legado Digital em http://support.apple.com/ptbr/HT212360 e http://support.apple.com/pt-br/HT212361. (Apple 2021)

 

A cláusula redigida pela plataforma digital induz a uma fragilidade legal, vez que na falta de indicação de um responsável para administração de alguns dados, conduz à aquisição da propriedade dos bens digitais pela plataforma, que poderá destruir os bens ou apropriar-se sem que os herdeiros tenham prazo para sua retirada.

O Facebook também possui política similar de legado digital, em que os herdeiros indicados pelo usuário em vida poderão apenas visualizar publicações (configurações modalidade privada somente eu), escrever publicação fixada no perfil, decidir quem poderá ver e publicar homenagens na página, aceitar novos contatos, atualizar a foto e capa do perfil e pedir a remoção da conta. Contudo, apenas estas opções, sendo limitado e sem acesso amplo. (Facebook 2021).

Aos demais dados pessoais das contas digitais não serão compartilhadas com os herdeiros, ficando como propriedade da plataforma.

Aline de Miranda Valverde Terra, Milena Donato oliva e Felipe Medon no brilhante artigo avaliaram a política do Google: “Já o Google fornece interessante mecanismo, permitindo ao usuário que cadastre pessoas de confiança que possam herdar todo o seu conteúdo no future, tanto no Gmail, como no Google Drive e em outros produtos. A Plataforma possibilita, ainda, que o usuário escreva mensagem de download das informações, após a Plataforma constatar certo período de inatividade da conta. O Google envia, ainda, lembrete a cada três meses para o usuário realizar eventual revisão dos contatos confiáveis, sendo, ainda, avisado via e-mail e SMS quando a conta completar o primeiro mês de inatividade. Dessa forma, permite que o usuário possa reiniciar o Contador do tempo, evitando que todos os seus dados sejam enviados aos “herdeiros” sem necessidade. O Google efetivamente comporta-se como depositário das informações digitais, e não como seu dono, em indevida apropriação de bens alheios […].” (2021. p. 63).

Assim, com exceção do Google, as plataformas ou destroem o conteúdo das contas de seus usuários falecidos ou não permitem o acesso pelos herdeiros.

 

 

5    HERANÇA DIGITAL E PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS: CONTROVÉRSIAS E PERIGOS

 

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD não disciplina a proteção póstuma, contudo, tendo em vista a tutela da personalidade post mortem, os herdeiros também podem exercer os direitos relativos ao tratamento dos dados pessoais, tais como: acesso, retificação e a exclusão.

Da mesma forma que os direitos a proteção dos dados dos terceiros, que mantinham conversas com o de cujus nas redes sociais também devem ser preservados, mantendo o sigilo e políticas de não compartilhamento de informações.

Estamos diante de controvérsias entre o acesso aos dados pelos herdeiros e a proteção e sigilo destas informações de terceiros envolvidos.

Em nosso ordenamento jurídico ainda não existe normatização para o assunto em questão, mas fato é que os direitos de personalidade continuam mesmo após a extinção da personalidade com a morte da pessoa.

Quando um terceiro mantêm conversas privadas nas redes sociais com alguém, ele tem a legítima expectativa de que essas informações estejam seguras, sigilosas e privadas. Quando falamos em transmissão dos bens digitais aos herdeiros, necessariamente, podemos analisar que essas informações de conversas e acordos online serão compartilhados com pessoas fora da relação, daí o perigo instaurado.

Claro que a herança de bens digitais deve ser respeitada, entretanto, não podemos desconsiderar o fato de que deverá existir mecanismos para que proteção aos dados de terceiros envolvidos permaneçam, mesmo após o fim da personalidade jurídica de uma pessoa.

Dessa forma, os terceiros não podem legitimamente confiar que os herdeiros não terão acesso aos conteúdos das mensagens após a morte do titular da conta. Em uma possível herança digital os dados serão transmitidos aos herdeiros e o acesso poderá ser amplo ou não, a depender da rede social e suas políticas.

Os terceiros devem estar cientes dessa transmissão de bens digitais na sucessão, pois como já acontece aos bens existenciais físicos (por exemplo as cartas), deve existir transparência das redes sociais quanto à possibilidade que os herdeiros tomem conhecimento do conteúdo das mensagens. Por óbvio, não afasta a possibilidade de eventual pedido indenizatório quando a divulgação da mensagem pelos sucessores causar dano patrimonial e/ou moral, protegidos, portanto, pela ordem jurídica.

Embora a LGPD não traga regras ao fato, a própria lei cria a figura de uma autoridade para normatizar pontos da lei obscuros ou inexistentes, a ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

A ANPD não poderá se eximir deste assunto, vez que, tem papel elementar na interpretação e implementação da norma, além do assunto ser totalmente pertinente e urgente em nossa sociedade atual extremamente digital e conectada.

As plataformas de serviços online não podem negar acesso aos bens digitais pela justificativa da proteção aos dados pessoais de terceiros ou do de cujus, também não podem alegar que o contrato de adesão e suas cláusulas padrão normatizem um tema tão complexo que é a herança digital.

A herança digital é um dever normativo do estado. O país que necessita legislar sobre isso e trazer segurança jurídica aos envolvidos, tanto para os herdeiros, terceiros, plataformas online e aos direitos da personalidade do de cujus, que continuam mesmo após a morte da pessoa.

Segundo Sergio Marcos C. de Ávila Negri e Maria Regina Cavalcanti Rigolon Korkmaz (2021. p. 211 e 2012) “ainda é importante observar, em um panorama geral, que a tutela post mortem da personalidade encontra lastro no ordenamento jurídico brasileiro, como é possível verificar, a título de exemplo, no parágrafo único do art. 20, do Código Civil, sem condicionamento há interesses de ordem patrimonial, como de condicionamento, a compreensão dos dados pessoais como representação direta da personalidade humana, como observa Danilo Doneda, e como corpo eletrônico da pessoa, Stefano Rodotà, apresentam balizas importantes no sentido de indicar a tutela post mortem dos dados pessoais enquanto valor protegido pelo ordenamento, embora a forma de melhor promover essa tutela esteja em aberto. (Danilo Doneda e Stefano Rodotà, apud por Sergio Marcos C. de Ávila Negri e Maria Regina Cavalcanti Rigolon Korkmaz […].” (2021. p. 211 e 212).

Para Laura Schertel Ferreira Mendes e Karina Nunes Fritz “a plataforma digital tem, portanto, o dever de transmitir, armazenar e permitir o acesso – inclusive depois da morte – às mensagens e conteúdos digitais vinculados a determinada conta, enquanto esta existir, a fim de que os legitimados possam acessar o conteúdo digital lá existente. Tendo em vista que a mensagem, uma vez enviada, não mais permanece na disposição do emissor, mas sim na conta receptora, os legitimados sucessoriamente a acessá-las têm uma pretensão contra rede social para que esta lhes garanta o acesso a todo o conteúdo existente à conta […].” (2019. p.200).

 

CONCLUSÃO

 

Diante ao exposto, conclui-se que sem o amparo legal necessário em nosso país estaremos diante de total insegurança jurídica, vez que as pessoas que trabalham com a internet nunca saberão de fato o fim que seus bens digitais terão.

As famílias por sua vez, ficarão totalmente desprotegidas contra às gigantes empresas de tecnologia que continuarão tomando posse dos bens digitais dos falecidos, e faturando grandemente sobre esses dados pessoais, desconsiderando a transmissão de bens tão valiosos economicamente aos familiares.

Quanto aos terceiros que mantiveram conversas privadas com os falecidos, ficará somente a incerteza se um dia suas conversas sigilosas serão lidas ou até mesmo compartilhadas com familiares ou demais pessoas.

Mas de uma coisa temos certeza: os bens digitais mesmo que existenciais possuem valor econômico para os envolvidos, e merecem atenção por parte dos legisladores, para se evitar um caos nos próximos anos.

 

ABSTRACT

The present work approaches to check how digital assets may or may not be transferred to heirs during digital heritage. Bringing evidence of the profitability that a profession of Digital Influencer can offer the individual to exercise, as well as demonstrating how the assets considered “existential” actually have patrimonial value, and how the protection of personal data must be observed, in the preservation of rights of the continuing personality of de cujus, the heirs and involved third parties. Thus, in the absence of legal regulation of an entire line it will bring to interested parties legal uncertainty and domain of personal data by companies, donations of online service platforms and social networks.

KEYWORDS: Digital inheritance, digital legacy, transmissibility, heirs, digital contracts; 
abusive clause; protection of personal data.

 

REFERÊNCIAS

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